elton
Durou pouco a imensa alegria
pela vitória do psicólogo Naziberto Lopes de Oliveira, 47 anos, cego,
que conseguiu em fevereiro na Justiça, em segunda instância e ao final
de um processo que durou seis anos, o direito de comprar o formato
acessível de qualquer livro publicado pelas editoras Companhia das
Letras, Contexto e Gen. As três recorreram da sentença para levar o caso
ao Supremo Tribunal Federal e ao Supremo Tribunal de Justiça. A
alegação? Pasmem: inconstitucionalidade!
Passado o choque inicial provocado
por tamanho empenho destas editoras em negar a uma pessoa cega um
direito básico, o da leitura, quem está ligado ao meio conclui que, de
certa forma, acaba sendo até bom, porque levanta a ponta do tapete e
joga um holofote sobre importantes questões que envolvem a
regulamentação, a produção, a distribuição e a comercialização do livro
acessível no Brasil e que agora, quem sabe, consigam ultrapassar um
pouco as enormes muralhas que ainda separam a deficiência visual - e
todas as outras - da sociedade.
Contei o caso a uma amiga
jornalista, leiga no assunto. Antes que ficasse absolutamente indignada
com a história toda, precisou entender que um cego também é um leitor e
não apenas de livros em braille ou daqueles gravados por locutores em
instituições. Ficou surpresa, assim como a maioria das pessoas, com a
existência de programas de computador, chamados leitores de tela, que
transformam qualquer texto em áudio - uma voz sintetizada lê tudo o que
está na tela para quem não vê. Os formatos digitais acessíveis dos
livros são, então, o pdf, o txt e o doc, que os cegos deveriam poder
comprar livremente das editoras, como aqueles que enxergam fazem em
qualquer livraria física ou virtual do planeta. Importante lembrar que
os três formatos acessíveis já estão prontos, o que significa que não há
nenhum custo adicional nem qualquer alteração no processo de produção.
Por que, então, a árdua luta na
Justiça pela garantia à acessibilidade? Mais: por que a continuidade do
processo, para que seja levado agora a última instância? No frigir dos
ovos, e haja ovo para frigir, a resposta é uma só: porque não há nenhum
interesse e nenhum movimento de mais ninguém para que seja diferente.
Que me desculpem a franqueza, mas os cegos, os maiores interessados, e
que juntos são os únicos que poderiam fazer ruir toda a estrutura que
impede um direito fundamental como a acessibilidade, quase nada fazem de
concreto. E não falo dos cegos pobres, sem instrução, isolados em suas
casas na periferia, ouvindo rádio o dia todo. Falo dos muitos e muitos
cegos com formação superior, que trabalham, têm plena consciência de
seus direitos, todos articulados e politizados, enchendo as redes
sociais e os fóruns virtuais com belas frases e longos textos, com
fortes e bem embasadas opiniões sobre tudo, do governo Dilma à PLAYBOY
da atriz Nanda Costa. Os mesmos que ficam calados diante do vergonhoso
monopólio do livro acessível no país, exercido por uma grande
instituição paulistana de atendimento à pessoa com deficiência visual,
do eficiente lobby que faz junto a editoras e ao governo e que garante,
por exemplo, a imutável lei que restringe a produção dos livros
acessíveis a entidades sem fins lucrativos.
Mais uma perguntinha que não quer
calar e que ainda deverá ser feita por muita gente: onde estão nessa
hora as organizações e órgãos do governo responsáveis pela defesa dos
direitos das pessoas com deficiência? Até onde sei, Naziberto luta pelo
verdadeiro livro acessível no Brasil há quase uma década e absolutamente
sozinho. Ouvi-lo, conhecer sua história, é emocionar-se com a coragem,
com a dignidade, com a garra de seguir em frente e durante tanto tempo
em nome de uma causa, enfrentando gente inescrupulosa que lucra e muito
com a exclusão dos cegos ou humilhantes e sucessivos "*nãos*", seja em
projetos inclusivos apresentados ao governo, seja de várias editoras
quando quer comprar livros. Agora, recomeça a luta, com o desgaste e as
despesas que vêm com a continuidade do processo: um advogado em São
Paulo, outro em Brasília, idas e vindas a cartórios, fóruns etc. Fora
que, se conseguiu uma vitória em segunda instância, foi somente porque
contratou advogados especializados nos direitos das pessoas com
deficiência. Fica a dica.
Quanto às editoras Companhia das
Letras, Contexto e Gen, não sei o que andaram ouvindo em telefonemas,
almoços e reuniões, mas, senhores, tenham a mais absoluta certeza de que
cegos não mordem, querem apenas exercer seus direitos como cidadãos e
consumidores e comprar os livros que quiserem, das editoras que quiserem
e quando quiserem, demanda esta, aliás, impossível de ser atendida
pelas instituições. Vejam que os cegos querem comprar, não ganhar
livros. Porque, ao contrário do que muita gente acredita, caridade e
gratuidade nada têm a ver com inclusão nem com acessibilidade. Os
senhores podem alegar o que quiserem: inconstitucionalidade, ilegalidade
e o que mais encontrarem em brechas jurídicas e pareceres técnicos. Não
existe argumento que impeça o acesso de qualquer pessoa, cega ou não, à
leitura de um livro, que não seja absolutamente excludente, antiético,
injusto. E certamente esta atitude lamentável fará com que percam muitos
leitores fiéis a suas publicações.
O mais importante é que a vitória
de Naziberto neste processo será a vitória de todos os cegos, de todos
os que são solidários a esta causa e de toda uma sociedade que pretende
ser mais igualitária e verdadeiramente inclusiva. Sua derrota também
será a derrota de todos nós e eis, neste episódio, um bom termômetro da
evolução social deste país.
email: outrosolhares@terra.com.br
twitter: OutrosOlharesAD
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